quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Doce na estante e flores no prato


Oh, Deus, quem mandou a gente faltar à aula da teoria dos conjuntos? - a casa da Nina está assim, com a reforma.

Quem leu meus dois posts anteriores sabe que a dona Nina Horta faltou à aula da Mari Hirata. Agora está explicado. Ela precisava escrever esta crônica para entregar na segunda-feira para a Folha. E a lição sobre a teoria do conjunto me faltou também, já que os livros que ela me deu ainda estão empilhados aqui, risotos com cozinha nórdica, sem ter estantes para acomodá-los. Mas estou feliz assim mesmo. É o que importa. As receitas da Mari, incluindo o tofu citado pela Nina, continuam. Não percam.
Aqui, o texto tirado do jornal Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, neste 23 de agosto de 2007 (aliás, vejam o caderno Paladar de hoje, no jornal Estadão - tudo sobre massas, um primor)

Doce na estante e flores no prato
NINA HORTA
Pascal Barbot desmontou minha tese de que se flor fosse gostosa, não haveria um jardim inteiro
VOCÊS NÃO acreditam na minha exaustão. Casa velha raspando, pintando, consertando janela e armários, livrando-se de papéis e livros. Os cartõezinhos de feliz isto ou aquilo e as fotos em preto-e-branco, pequeninas, que sobrevivem aos mais queridos. Tanta bobagem entulhando a nossa vida...O pior não foram as pinturas e as raspações, mas o pó do chão que sujava a pintura, e o pó da pintura que sujava o chão. E estamos assim, dando volta nos nossos rabos há dois meses (lembrem-se, esta é uma coluna de domesticidade). O pó se entranha em absolutamente tudo. O livro chegado ontem da Amazon parece um alfarrábio achado numa escavação em Ouro Preto. Impressionante o poder da poeira. Imagino que minhas entranhas estão como a dos mineiros ingleses ou como as dos que respiram crack nas esquinas. Minha filha veio me ajudar e, diante da bagunça inarrumável, teoriza que o problema é que faltaram aulas no primário sobre teoria dos conjuntos. Aquilo de lé com lé, cré com cré. É livro misturado com doce e panela, quadros com escova de dentes e pesos para exercício muscular com caixinhas e batons antigos, daquele bem alaranjado que tinha o nome de uma miss, Luz Marina Zuloaga. Ah, ah, é realmente isso que vai ao meu redor... Realmente o mal do Brasil é a falta de teoria de conjuntos, aquela coisa de ter noção do que vai com o quê. Demoramos anos para aprender essa façanha de uso diário. Desde o pré-primário, lembram-se, juntando bola com bola, triângulo com triângulo, reta com reta. Como um pintor e um raspador de chão podem saber que Shakespeare vai com tragédia, e não com os roteiros de "Absolutely Fabulous"? Impossível. Dirão vocês que era minha obrigação guiá-los, mas o trabalho de todo dia? Confiei. Consegui uns pequenos espaços de lazer. Este foi o mês do Boa Mesa, de comilança geral, e perdi todas. Só fui comer o jantar de Pascal Barbot, um cozinheiro três estrelas que passou por aqui, com uma cara de menino, um simpático leprechaun holandês que desmontou minha tese de que se flor fosse gostosa, não haveria um jardim inteiro. Alguém já viu meninos saltando muro atrás de margaridas ou rosas? E de manga? Pois é. Era uma comida gostosa, não toda, porque os cozinheiros que vêm para cá resolvem mostrar que sabem também lidar com com nossas frutas e haja maracujá. Gostei de uma farofinha de brioche com o peixe. Tenho confirmado pelas minhas últimas comilanças que o mais "in" dos "ins" é um caldo feito com carinho extremo, transparente, leves pingos de coisas que você sabe o que são, mas não identifica, e legumezinhos perfeitos boiando nele. É para os muito sofisticados, porque para cada cenourinha mini daquelas, 30 foram afastadas como imperfeitas. Para cada rabanete esférico, morreram 300 concorrentes, loucos para mergulhar no calor daquela sopa. E as florezinhas, tremebundas, lilás, rosadas, flores das próprias ervas que não foram usadas, enfim, uma sinfonia de frescura e frescor, caldos bem diferentes daqueles pedaçudos que costumávamos comer na infância, com cheiro de tutano. Eu não gostava daqueles, detesto sopa, não estou me lamuriando pelo passado, só constatando modas. Vi a Mari Hirata, minha cozinheira preferida, minha professora preferida, mas não agüentei ir cozinhar com ela e minha cunhada nem ir à Liberdade nem à Cantareira. O jantarzinho fruto desse encontro de três dias está se realizando agora, neste minuto em que vos escrevo com os nervos à flor da pele. Foi tudo à la japonaise, pelo que sei. Já experimentei o tofu da Mari. Não tem absolutamente nada a ver com tofu nenhum. É uma coisa leve, cheirosa, que você comeria quilos, como maria-mole, gulosa. Que pena... Perdi os encontros anuais por causa da maldita falta da teoria dos conjuntos.
ninahorta@uol.com.br (este email é divulgado pelo Jornal, portando, se quiserem escrever para ela, fiquem à vontade)

3 comentários:

Anônimo disse...

Textos como sempre tão gostosos de ler os da Nina Horta..por conta desta Paladar sobre massas fui exclusivamente ao centro de POA,cheia de coisas a fazer, atrás do Estado..valeu pois a matéria está excelente! beijo,Mariângela.

Agdah disse...

Menina, me deleitei agora. mas venha cá, você conhece a criatura assim pessoalmente?

Neide Rigo disse...

Oi, Agdah,
conheço, sim, a Nina é uma grande amiga e minha musa-gastro-inspiradora. No dia da foto, eu de amarelo, ela me deu dezenas de livros, com os quais ainda me delicio por aqui. Apareça! beijos, n